quarta-feira, 29 de abril de 2015

Síntese da teoria cartesiana do conhecimento

Síntese da teoria cartesiana do conhecimento
O projeto
Construir um sistema de verdades indubitáveis em que de uma verdade que seja impossível considerar falsa possamos deduzir outras verdades que sejam certezas absolutas. 
As razões de ser do projeto

1. O sistema dos ditos conhecimentos do seu tempo era constituído por verdades e falsidades. 
2. Temos de separar o verdadeiro do falso e justificar que o que acreditamos ser verdadeiro é absolutamente verdadeiro. 
3. O sistema dos ditos conhecimentos do seu tempo não tinha bases firmes e estava desorganizado a tal ponto que havia falsidades na base do sistema e verdades noutros pontos desse sistema. 
4. Temos de encontrar uma verdade indubitável que sirva como base ao sistema dos conhecimentos e permita organizá-lo firme e seguramente. 

A estratégia
para atingir esse objetivo
Vamos submeter ao exame rigoroso da dúvida as bases em que assentava o sistema dos conhecimentos estabelecidos. 
1. Consideraremos falso o que não for absolutamente verdadeiro ou indubitável. 
2. Consideraremos enganadora qualquer faculdade que alguma vez nos tenha enganado ou de que cujo funcionamento correto possamos por muito pouco que seja suspeitar. 
A dúvida será por isso aplicada de forma hiperbólica. 
3. As bases do sistema dos ditos conhecimentos que vamos examinar implacavelmente são:
– A crença de que os sentidos são fontes fiáveis de conhecimento sobre as propriedades dos objetos físicos. 
– A forte crença de que existem realidades físicas; 
– A crença de que as mais fiáveis produções do nosso entendimento – as matemáticas – são um modelo de verdade indubitável. 
O que passar neste exame rigoroso será indubitavelmente verdadeiro. 

O que não passa no exame da dúvida metódica/hiperbólica
1. Os sentidos não são dignos de confiança quanto às informações quer sobre as qualidades das coisas sensíveis quer sobre a existência dessas mesmas coisas. 
As ilusões dos sentidos e o argumento de que não temos forma de distinguir absolutamente o sonho da realidade, o fictício do real levam-nos a negar o empirismo (que o conhecimento comece com a experiência sensível) e a crença de que o mundo físico indubitavelmente existe. 
2. O correto funcionamento do nosso entendimento (razão) é colocado sob suspeita devido ao argumento de que Deus pode tê-lo criado destinado a confundir o falso com o verdadeiro. 
Os objetos sensíveis e os objetos inteligíveis – exemplificados pela matemática – são colocados sob suspeita e por isso deles não pode derivar-se conhecimento algum. 

O que resiste à dúvida. 
Resiste à dúvida a existência do sujeito que de tudo duvida. «Duvido – penso – logo existo» é uma verdade indubitável porque a existência de quem duvida não pode ser objeto de dúvida nenhuma. 

Caraterísticas da primeira verdade

1. É primeira porque impõe-se no momento em que de tudo se duvida. 
2. É primeira porque não deriva de nenhuma outra (teria de haver outra, o que não acontece).
3. É objeto de intuição existencial e não de dedução – será o ponto de partida de todas as deduções que faremos para construir o sistema firme dos conhecimentos. 
4. É, por isso, o primeiro princípio do sistema dos conhecimentos.
5. Corresponde à existência de um sujeito cuja natureza ou essência consiste em pensar. 
6. É uma ideia ou verdade inata porque se impõe como absolutamente indubitável independentemente da experiência. Nasce connosco e descobrimo-la como certeza sem apoio empírico. 
7. É um critério ou modelo de verdade, dada a evidência, clareza e distinção, com que se impõe. 

Verdades indubitáveis que deduzimos da primeira verdade

1. A alma é distinta do corpo. 
Todas as coisas sensíveis – incluindo o meu corpo ‒ podem não passar de realidades que só existem em sonho. Mas existo e disso não posso duvidar. Se não preciso do corpo para existir, então a alma – o que eu sou – é distinta do corpo e mais fácil de conhecer do que este. 
2. Deus existe. 
Se duvido e nada conheço a não ser que existo e sou um ser pensante, então sou imperfeito. Mas de onde veio esta ideia? Comparei as minhas qualidades com as que caraterizam um ser perfeito. Logo, sem a ideia de um ser perfeito – do que é ser perfeito ‒, não saberia que sou imperfeito.
Mas sou a causa desta ideia? Sou o seu autor? Não, porque ela representa mais perfeição do que a que possuo e poderia causar. Logo, só um ser perfeito é causa da ideia de perfeito. Quem é esse ser? É Deus. Logo, Deus existe.

A importância da existência de Deus como ser perfeito

1. Afasta-se a desconfiança no funcionamento correto do nosso entendimento.
Provado que Deus não pode enganar, podemos confiar nas operações do nosso entendimento/razão. O critério da evidência é fundamentado de modo que aquilo que considero claro e distinto – evidente – é claro e distinto, absolutamente indubitável. 
2. Supera-se, em parte, o solipsismo.
Com efeito, Deus é ser cuja existência que não depende do sujeito pensante.
3. Deus é o fundamento metafísico das crenças verdadeiras. Garante-as absolutamente, porque garante que as evidências atuais são realmente indubitáveis como também que o serão sempre. O conhecimento torna-se assim um conjunto de verdades objetivas, independentes do sujeito pensante.
A recuperação da crença na existência do mundo físico
Descartes apercebe-se de que há ideias das coisas que não são produzidas pelo sujeito pensante. Existindo, devem ter uma causa: as próprias coisas sensíveis. Esta propensão ou crença natural é legítima e fundada dado que Deus, a quem a devo, não me engana. 

O racionalismo cartesiano
1. A razão é a fonte ou origem do conhecimento. 
Só as verdades descobertas pela razão e deduzidas desta têm direito ao título de conhecimento. O princípio do sistema dos conhecimentos é uma verdade puramente racional. Os sentidos não merecem confiança. 
2. O ideal de conhecimento em Descartes é o de um sistema dedutivo análogo ao modelo do raciocínio matemático que sempre o deslumbrou. 
De uma verdade indubitável – a existência do eu – deduz outras verdades que devem apresentar a mesma clareza e distinção. A matemática é um ideal metodológico e não a rainha das ciências, dado que esse estatuto de ciência primeira pertence à metafísica. 
3. As ideias que desempenham um papel decisivo no conhecimento são ideias inatas. 
Ideias como as de eu e de Deus formam-se no pensamento sem o contributo da experiência. São ideias que, mediante a reflexão puramente racional, a razão descobre em si, atualizando o que potencialmente existe na alma desde que existimos. O inatismo é a afirmação da autonomia da razão em relação à experiência. 
4. A dúvida metódica está ligada à natureza racionalista da filosofia de Descartes. 
A vontade de duvidar parte da ideia de que a razão não pode atingir a verdade subordinando-se à experiência, aos sentidos. A dúvida cumpre a função de devolver a razão à plena posse de si mesma, torna-a autónoma ao libertá-la da dependência em relação aos sentidos e dos falsos pontos de partida. 

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